terça-feira, 5 de junho de 2007

Texto da Maria João Avillez Van Zeller

Aqui está o texto completo que a Maria João Avillez Van Zeller nos escreveu. Como não coube na Partilha tivemos que nos servir destas novas tecnologias, ficando assim na Partilha apenas uma parte! Enfim, aqui fica o texto completo. Espero que gostem!

“FELICIDADE”

Começo por agradecer o terem-se lembrado de mim. Foi antes do mais uma felicidade. E poder falar de felicidade num tempo onde o vento que sopra confunde egoísmo, materialismo, consumismo, o culto da eterna juventude, o culto de corpo, a proibição do sofrimento e por aí fora, ainda me convoca mais. Primeiro porque nasci com a felicidade inscrita no código genético, e isso será sempre aquilo que antes de mais agradeço a Deus. Um dom, digo bem. Deus encheu-me á nascença o olhar de luz para que eu melhor soubesse a cada instante cantar o hino da vida. Para ter podido constituir e formar a família que formei, centro de onde tudo irradia e simultaneamente rectaguarda que me ampara e protege.
Para amar certos lugares e descobrir outros lugares até á eternidade.
Para fruir a palavra dos poetas, essa suprema prova da existência de Deus. Para enfim sorver cada instante da vida, emprestando a cada momento a emoção e a intensidade que merecem.
"Ah sempre a gostar tanto assim da vida..." atiram-me como um defeito de que tivesse de me envergonhar e seguramente de me penitenciar. Eu percebo-os: o mundo esta feio, os dias difíceis, a paisagem é árida, a desarmonia agride, a angústia corre célere, e tudo corroendo.
Mas eu sinto, ou melhor, sei, que Deus gosta de me ouvir cantar o hino da vida. Dito assim pode isto parecer-lhes algo de muito pueril ou até demasiado simplório Não é. Porque o que me faz falar deste modo é justamente a aguda consciência de sentir isto mesmo, uma felicidade jubilosa. Há dias o meu marido ao ver-me pendurada sobre o computador e tendo-lhe eu dito que escrevia sobre a felicidade, retorquiu-me esta coisa mais reveladora que uma radiografia da alma: " ainda bem que te pediram a ti, não há mais ninguém que pudesse falar de felicidade como tu..."
Mas é também certo que o passar dos anos e do tempo sobre a vida e as suas coisas, foi-me ensinando racionalizar este dom, dando-lhe um sentido.Com a consciência – e no meu caso com a prova - de que há marés altas mas há também marés baixas, vazias, desoladas, onde se roça todos os desamparos. Ou seja fiquei com o sentido e a certeza de que somos chamados a ser e a provar em tempo de felicidade mas também em tempo de lágrimas, o que nos exige respostas distintas pois nos interpela de modo diferente. Em segundo lugar porque adquiri com a vida uma certeza que se foi solidificando: a da necessidade da minha própria responsabilização perante a felicidade. Face a Deus, aos outros, á própria vida. Ou seja trata-se de pôr a render um dom, transformando-o numa vocação sentida e vivida para ser neste mundo uma intermediária do bem em vez do mal, da luz em vez das trevas, do canto em vez do choro.
Não é tarefa fácil:
Como responder? E como responder na minha profissão de jornalista? E foi então que um belo dia vieram ter comigo as três virtudes teologias e hoje vou falar-lhes de duas delas.
Como cidadã, como jornalista, como mulher católica num mundo tão adverso. No fundo é como se eu abrisse uma janela para o mundo e dissesse em voz alta como é que, por um lado eu tento viver a paisagem que vejo sem nela me perder, e por outro, como a tento transmitir.
Mas por ser essa paisagem neste momento tão agreste e árida, e por estar o mundo hoje tão inquieto e inquietante – ou seja tão precisado de Deus - viajarei por essa geografia amparada em dois pontos fulcrais que são as virtudes da Esperança, da Fé. Parecem-me ser o mais luminoso farol para a caminhada que diariamente cumpro: em casa com os meus, lá fora com os outros, e na profissão, com todos os seres humanos que mobilam o meu painel de jornalista.
Mas porque especialmente a fé, a esperança? Vejamos só: não será a Esperança a melhor resposta divina ao cepticismo? Não será a Fé o seu recado para a incerteza; e não será a Caridade, o seu desafio para o individualismo?
ESPERANÇA
1 - A um primeiro olhar os dias que passam estão de tal forma ancorados no cepticismo e na descrença que parece quase descabido falar de esperança.
E que nos surge de imediato como um dos factores desse cepticismo ou desse desespero? A lei da media, o poder da media, o fascínio da media, a tirania da media. Pode parecer-lhes bizarro ser uma jornalista a proceder a tão veemente diagnóstico, mas é o meu apesar das brilhantes excepções que mais não fazem infelizmente do que confirmar a regra. Mas para tornar mais claro este mesmo diagnóstico, peço-lhes paciência pois terei que viajar no tempo:
Na já longínqua década de 60 quando iniciei a minha actividade profissional na RTP tinha eu 17 anos, a televisão era um entretêm, uma novidade e uma diversão, a preto e branco.
Por outro lado a casa era um lugar assente numa estrutura familiar sólida e de regras claras onde cada um, pais, avós e filhos desempenhava um papel. Não era como hoje, um local de passagem, um dormitório, mas uma rectaguarda onde entre outras coisas se conversava e onde havia quem lesse e contasse histórias. E a escola era o núcleo central de onde tudo irradiava. Neste contexto, a televisão era uma entre outras solicitações.
Dando agora um salto para os dias de hoje – que vemos?
Vemos que como desapareceram todos os outros factores de educação e de cultura e como as famílias estão desamparadas, desfeitas ou assumiram novas e ínvias formas, a televisão tornou-se o único alimento afectivo e único amparo intelectual dos jovens porque está sozinha e faz lei. Vemos a realidade deformada pela media que dá como real, verosímil e certo, aquilo que só muito raramente o é. Vemos a anormalidade como regra e uma visão da vida e das coisas, pintada quase exclusivamente com as cores dos assassínios, do sexo, do terror, da violência glorificada. E tudo isto num cenário de pura concorrência a ver quem leva a melhor num reino que não referencia nem a realidade nem a vida. Para já não falar que não se estimulam valores nem estéticos nem éticos, que há a tendência para tomar a excepção pelo todo, de onde resulta obviamente um quadro de padrões anormais. Alem disto que não é pouco, toma-se por livre e boa uma informação que circula quase só pelo fait divers, pela invenção de factos políticos, pelo grande espectáculo sempre superficial. E tomam-se os políticos por bobos da corte. E como são vistos e entendidos como tal, logo são ridicularizados, julgados, mas só raramente ouvidos naquilo que nos devia surgir como o essencial
Então como corresponder à chamada da esperança, entalados que estamos entre duas realidades - a veiculada pela media que nos é dada ver como a certa - e a outra, que está para além dela e como tal nos deve convocar?
Onde ir buscar a esperança na redenção desta tão forte maré, continuando a cumprir e a trabalhar com um "estilo de vida cristão", no meio deste incêndio? Á convicção de que o mundo é melhor que isso, que a anormalidade não é a regra, nem a perversidade o tema. Á certeza de que o efémero não terá a ultima palavra sobre o essencial nem que a sombra cobrirá de vez as alternativas. Parece pouco, pode parecer vago. Julgo que não.
Assim sejamos capazes, de levar esta esperança a bom porto.
2 - A Fé
Uma fé vital, deve levar-nos direitos " às duas cidades" a cidade dos homens e a cidade de Deus, que temos de servir, embora não de igual maneira mas junto de ambas as quais nos é exigido que testemunhemos.
Essas duas cidades de que nos falava Santo Agostinho e que séculos depois o Concilio Vaticano II foi buscar, exortando os cristãos a "desempenhar com zelo e fidelidade as suas tarefas terrestres, guiados pelo espírito do Evangelho."E dessas duas cidades igualmente nos falou em tempos uma Carta Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa denominada "A Igreja na Sociedade democrática" que passo a citar:
"Todos os cristãos membros da comunidade dos crentes são simultaneamente membros da cidade dos homens onde com a força inspiradora da fé se devem empenhar no progresso da sociedade no seu conjunto. "
Julgo que servir a cidade dos homens – como nos pede e bem, o nosso dever de responsável cidadania - é fazê-lo sabendo antes do mais que há César mas que sobretudo há Deus. E que esse Deus não precisará de excluir César se houver lucidez para não confundir as duas cidades. Como é que isto se faz? Correndo o risco de parecer demasiado simplista direi que muito simplesmente se faz...com os olhos postos em Deus. Buscando no sopro do Espírito Santo a qualidade do nosso empenho e a força da entrega ás múltiplas e tão diversas tarefas que nos são solicitadas. Numa palavra, buscando no farol da cidade divina – essa a que pertencemos pelo baptismo que nos abriu a porta do reino de Deus - o melhor guia para os nossos passos. E embora esteja ciente de que é perigoso reduzir assim a densa complexidade das "duas cidades", julgo apesar disso ser nesta total e permanente interacção entre as tarefas de Deus e as dos homens, que somos e nos realizamos.
Claro que no caso da minha profissão e pelo cru diagnóstico acima exposto, a empreitada não é fácil. Tudo desencoraja: os meios onde ando, o tipo de colegas que há, o destoar do coro geral, a pressão avassaladora do "politicamente correcto".Mas tenho uma arma: saber que muito simplesmente, Deus me pisca o olho e me dá uma pequena dose de paciência para, ouvindo os outros repetirem mil vezes ao dia que sou reaccionária, fora de moda, conservadora e preconceituosa, bem-nascida, continuar apesar disso, a escrever sobre a nossa Igreja, sobre Fátima, sobre as coisas de Deus e os mistérios da fé. Sem vergonha e com gosto. Entrevistando Bispos e sacerdotes como ocorreu por três vezes com D José Policarpo cardeal patriarca de Lisboa, no meu programa televisivo da Sic Noticias; ou como também sucedeu com o Padre Zé Manuel, o padre Tolentino, o João Seabra, o Padre Vítor da minha paroquia do Campo Grande. Ouvindo-os, dando-lhes mais voz e maior visibilidade. Dando-lhes o espaço e a audição que merecem e agradecendo-lhes por isso. Ou, ainda no âmbito do meu trabalho profissional, continuar a convidar – porque não, afinal? - os meus múltiplos entrevistados a conversarem comigo sobre a sua relação com o transcendente e a falarem-me - se assim o quiserem, obviamente - de Deus.
Eis o que talvez seja um possível exemplo da interacção entre a cidade dos homens e a cidade de Deus.

Maria João Avillez Van Zeller

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